O advogado Marcos Chaves, do gNA – área de qualidade do escritório, fala sobre “a responsabilidade exclusiva dos usuários que negligenciam prazos e segurança”, em artigo publicado no Revista Consultor Jurídico (ConJur).
Leia o artigo na íntegra:
Em um cenário de intensa e crescente universalização do acesso à tecnologia e do boom de serviços baseados na internet, tornou-se normal que usuários adiram a tais serviços sem tomar conhecimento dos Termos de Uso e do modo de operação dos serviços.
Os Termos de Uso são o contrato entre a plataforma e o usuário. Explicam o modo de funcionamento do serviço, das ferramentas disponibilizadas e as responsabilidades inerentes a cada uma das pontas da relação. Na concepção legal, são contratos de adesão (artigo 54, caput, CDC), pois as cláusulas são pré-estabelecidas pela plataforma; o CDC apenas estabelece que tais contratos devam ser redigidos de forma clara e de fácil compreensão (artigo 54, parágrafo 3º) e que as cláusulas limitadoras de direitos devem ser redigidas com destaque (artigo 54, parágrafo 4º).
Apesar de nenhum serviço da internet permitir o ingresso de novos usuários sem que haja concordância com os Termos de Uso, não é raro encontrar usuários que ingressaram com ações judiciais para pleitear toda sorte de reparações — muitas vezes, contra os Termos de Uso. Em certos casos, a aplicação indiscriminada dos princípios protetivos do Código de Defesa do Consumidor acarreta em condenações judiciais, ainda que não haja falha na prestação de seu serviço (artigo 14, parágrafo 3º, I, CDC) e que tenha agido em estrito cumprimento aos Termos de Uso que, frise-se, o usuário aderiu no momento do cadastro/contratação.
Contudo, o entendimento jurisprudencial sobre o assunto vem se consolidando no sentido de reconhecer e privilegiar a manifestação de vontade dos usuários que aceitam os Termos de Uso de serviços on-line, repelindo pretensões deduzidas contra essas disposições. Recente decisão do Juizado Especial Cível de Taubaté (SP), em um processo contra um provedor de aplicações de internet (uma plataforma e-commerce de anúncios), corrobora essa “guinada” da jurisprudência.
No caso, o usuário adquiriu um produto junto a um vendedor anunciante daquela plataforma, mas não recebeu o bem. Nesses casos, os Termos de Uso da plataforma estabelecem que o usuário dispunha do prazo contratual de 21 dias para informar o site sobre o problema na compra para receber a restituição integral do valor desembolsado. Trata-se do programa “Compra Garantida”, instituído por aquela aplicação para conferir maior segurança às transações ali celebradas.
Ocorre que o usuário acionou a plataforma fora do prazo contratual de 21 dias, o que inviabilizou a recuperação dos valores por parte do site. Assim, o usuário ingressou com ação judicial para pleitear a restituição — além de indenização por danos morais.
O juízo sentenciante consignou que a parte autora havia sido claramente informada, no momento da contratação, acerca das condições e prazos para se beneficiar do programa de garantia. Como a empresa comprovou que a parte autora havia acionado o site após o prazo de 21 dias, o magistrado sentenciante destacou não vislumbrar “qualquer mácula na atuação da ré”, que “agiu conforme os limites dos termos de uso”.
O programa “Compra Garantida” é uma importante e interessante medida de proteção dos interesses dos usuários. Isso porque, enquanto o CDC prevê um prazo de sete dias, contados da assinatura do contrato ou recebimento do produto/serviço para que o usuário eventualmente desista da compra feita à distância (artigo 49, caput), o “Compra Garantida”, contratualmente, oferece um prazo de 21 dias, contados da data da compra, para que o usuário informe o insucesso na transação, garantindo a restituição se for acionado nesse ínterim.
Durante esse período de segurança, o valor pago pelo usuário permanece retido na plataforma, e o vendedor não pode resgatá-lo. Essa medida garante que, caso o usuário acione a garantia do programa dentro do prazo, os valores serão efetivamente restituídos.
Dessa forma, em que pese a sentença ter reconhecido o prejuízo da parte autora, sugerindo que esta poderia ter sido prejudicada pelo anunciante do produto, a sentença destacou a culpa do usuário pelo seu prejuízo.
Afinal, no caso, a plataforma na qual a compra havia sido feita disponibiliza diversos mecanismos para minimizar eventuais riscos, que não foram corretamente utilizados por aquele usuário, como o prazo de 21 dias do “Compra Garantida” para informar quaisquer problemas na compra e receber a restituição do preço.
Nesse sentido, a sentença afastou a responsabilidade daquele provedor de aplicação por entender que (i) o site disponibilizou mecanismos para assegurar a segurança dos procedimentos de suas plataformas; e (ii) a parte autora não utilizou tais mecanismos, indo ao contrário do previsto nos Termos de Uso que havia aderido.
Concluiu o juízo que a parte autora, “depois de permanecer inerte e de descumprir suas obrigações enquanto consumidor e usuário do site em questão, [não pode] tentar responsabilizar o intermediário que cumpriu o que lhe incumbia”.
O STJ, ao julgar caso semelhante contra o mesmo provedor de aplicações, entendeu pela sua ilegitimidade para responder por problemas em um veículo adquirido por meio de anúncio ali publicado.
Na decisão monocrática que deu provimento ao Recurso Especial 1.639.028/SP, interposto por aquela plataforma, o ministro relator Moura Ribeiro destacou que o pagamento não foi realizado “pelos meios ‘seguros’ de compras de ofertas”, consignando, ainda, que a plataforma “não é responsável pela idoneidade das pessoas que ofertam bens em seu sítio e muito menos pelos pagamentos não realizados”, reconhecendo sua ilegitimidade passiva.
Entendimento semelhante foi adotado pela 5ª Turma Recursal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que negou provimento a recurso interposto por outro usuário que deduziu pretensões contra os Termos de Uso.
Nesse caso, a parte autora utilizou o serviço para anunciar um produto à venda. Alegou ter recebido um e-mail, supostamente enviado pelo site, confirmando o recebimento dos valores e autorizando o envio do produto. Despachou a mercadoria, mas não recebeu o valor da venda.
A parte autora, na verdade, havia recebido um e-mail falso enviado por um terceiro fraudador. Ocorre que os Termos de Uso da plataforma, bem como os Termos de Uso do gerenciador de pagamentos parceiro, esclarecem expressamente que (i) o site de anúncios não envia e-mails com esse teor, e (ii) o vendedor anunciante só deve enviar os produtos após acessar sua própria conta do gerenciador de pagamentos e visualizar o ingresso dos valores referentes à transação, o que não fora feito por aquele usuário.
Com efeito, não havia registro de nenhuma transação de venda na conta da parte autora no site e nenhum valor recebido na conta do gerenciador de pagamentos.
Inclusive, é importante destacar que, naquele site, as partes negociantes somente têm acesso aos e-mails pessoais uns dos outros após a aprovação do pagamento. Fora isso, a plataforma só permite a comunicação entre comprador e vendedor através de um espaço público em cada anúncio, voltado especificamente para solução de dúvidas sofre os produtos e ofertas. Os Termos de Uso vedam, expressamente, qualquer tipo de negociação fora da plataforma, justamente pela impossibilidade de controle e segurança fora dos domínios virtuais do site.
Por outro lado, os incautos vendedores, atraídos pelas ofertas generosas dos fraudadores, iniciam as negociações fora da plataforma, violando os Termos de Uso do site e abrindo mão das ferramentas de segurança ali disponibilizadas.
Assim, o único meio de o terceiro fraudador ter obtido o e-mail daquela parte para envio do e-mail falso foi pela própria negligência do usuário, que criou e assumiu o risco de negociar fora da plataforma, em violação aos Termos de Uso.
A sentença de 1º grau julgou os pedidos improcedentes, e melhor sorte não assistiu ao usuário em seu recurso: a 5ª Turma Recursal, por unanimidade, negou provimento ao recurso, destacando a “falta de diligência do autor, que desprezou a ferramenta disponibilizada” e que os Termos de Uso determinam, expressamente, que a conta no gerenciador de pagamentos deve ser verificada antes do envio do produto anunciado.
O que vemos, com efeito, é que há uma crescente preocupação dos plataformas em disponibilizar mecanismos que reforcem a segurança de seus usuários.
Nesse cenário, a guinada jurisprudencial se mostra acertada. É justo que as plataformas não sejam responsabilizadas por problemas experimentados por usuários que tenham agido em desconformidade com as regras dos serviços e negligenciado mecanismos de segurança disponibilizados.
O usuário eventualmente lesado por ter agido em desconformidade com as regras de utilização e ferramentas de segurança de serviços on-line somente pode ter sofrido tais danos por sua própria negligência. Trata-se, pura e simplesmente, da culpa exclusiva do usuário, prevista no artigo 14, parágrafo 3º, II, do CDC, como causa excludente de responsabilidade.
Afinal, a criação de meios eficientes de segurança de serviços (artigo 4º, V, CDC) é um dos princípios da Política Nacional das Relações de Consumo, e a disponibilização de tais mecanismos afasta qualquer entendimento de falha na prestação do serviço.
Enfatize-se, nem mesmo o mais diligente contratante pode oferecer segurança ao usuário que cria os seus próprios riscos ao agir em desacordo com os Termos de Uso do serviço oferecido, negligenciando as orientações e ferramentas de segurança desenvolvidas especialmente para proteger a relação contratual. Nesses casos, não há fundamento para que a plataforma seja responsabilizada por um risco criado pelo próprio usuário.
Processo 1002870-42.2018.8.26.062
Processo 0013338-92.2018.8.19.0038
Processo REsp 1.639.028 – SP
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